VOTOS DO BODHISATVA
“Eu estou aqui, e não tenho nada a dizer, e o estou dizendo, e isto é poesia.” John Cage em “Conferência sobre o nada (1949)”
Lutar com palavras é a luta mais vã
No entanto lutamos mal rompe a manha CDA
Seres são inumeráveis, faço o voto de salvá-los todos;
Apegos são inexauríveis, faço o voto de extingui-los;
Portais do Dharma são ilimitados, faço o voto de aprendê-los.
O caminho de Buda é insuperável, faço o voto de me tornar esse caminho.
Gostaria de começar pela afirmação geral que se faz sobre o bodisatva: a de que ele é uma pessoa que se preocupa com o despertar dos outros antes do que com o seu.
Apenas do ponto de vista do relativo, não há problema nenhum, é uma nobre atitude.
Se olharmos apenas do ponto de vista do absoluto, veremos que há dualidade nesta afirmação. Do ponto de vista do Absoluto não há o outro. Logo não podemos nos preocupar com o outro mais do que conosco. Somos todos um.
Mas se juntarmos o Absoluto com o Relativo veremos que embora eu e o outro sejamos um, eu não posso sentir a fome dele nem ele a minha. Se nós dois temos fome e eu comer, ele vai continuar com fome. Como diz o sutra: ”cada coisa tem seu valor intrínseco e está relacionada a tudo o mais em função e posição.” Mas se eu me considerar um com ele e ao mesmo tempo, souber que somos duas fomes, nós dividiremos a comida. E aí “a vida comum se encaixa no Absoluto como uma caixa à sua tampa.”.
Então eu não estou sendo generoso quando sou um bodisatva; a generosidade ainda pressupõe a dualidade. Eu sou um bodisatva quando sou um com o outro, e então, naturalmente, cuido dele como de mim mesmo. Está além da caridade, é algo tão natural quanto respirar.
Seres são inumeráveis, faço o voto de salvá-los todos;
Se salvar um ser é mostrar-lhe o Darma na esperança de que, praticando-o ele possa despertar, é evidente que não posso atingir todos. Como posso então, cumprir este voto? Como posso “salvar” um seixo dentro de um rio na China? Apenas dentro do Relativo isto é impossível. Mas do ponto de vista do absoluto posso ser o seixo, posso ser um com ele. Quando todas as coisas são um comigo, então estão todos “salvos”. Porque quando tudo é um não há mais um Eu que fica definindo o que é certo ou errado. Logo não há nada a ser salvo. Tudo é o que é.
Apegos são inexauríveis, faço o voto de extingui-los;
Se fico apenas no relativo é uma tarefa impossível. Sempre teremos algum apego. Mas quando entendo a unidade de tudo, aí é diferente: dentro do Absoluto não há apegos. Como posso me apegar se tudo é um? Se já somos Buda e Buda é completude, então a quê se apegar? Se tudo é um comigo eu estou completo e não tenho como me apegar a nada. Então ao invés de lutar contra os apegos, devo me tornar um com tudo. Só assim não haverá a dualidade inerente a toda luta.
Não lutamos contra nada, não queremos nada, apenas sentamos. “Sem ganho, sem nenhum ganho”.
Portais do Dharma são ilimitados, faço o voto de aprendê-los.
Do ponto de vista do relativo o ensinamento com palavras é importante e devemos pratica-lo com afinco. Somos seres racionais e a palavra faz parte do que somos. Não podemos despreza-la. Mas do ponto de vista do Absoluto o Zen é o “portal sem portais”. Está além do saber e do não saber. Então a palavra tem que ser transcendida. Quando em zazen estamos em silêncio; não há palavras.
Então o zen é um portal porque no Relativo é o caminho para alguma coisa; é o caminho para a cessação do sofrimento. É sem portais porque no Absoluto não existem portas. A porta liga um lugar a outro. Se tudo é um ela não tem o que ligar. Mas se juntarmos o Relativo com o Absoluto veremos que “Cada coisa tem seu valor intrínseco e está relacionada a tudo o mais em função e posição.” Dentro do Um podem haver portais e eu me proponho a aprendê-los.
Ao mesmo tempo sei que me tornando esse Um, os portais desaparecem.
O caminho de Buda é insuperável, faço o voto de me tornar esse caminho.
Eu ando diligentemente pelo caminho até que não há mais caminho separado de mim.
Há um verso que diz: ”caminhante não há caminho, caminho se faz ao andar.” Há um ponto em que não há mais Eu e o Caminho. Eu sou o Caminho. Mas mais além disto, não há mais Eu, não há mais Caminho, não há mais cabana, não há mais touro, não há mais monge. Apenas duas mãos abertas de volta à praça. Mas lembrem-se: elas estão de volta à praça, estão no mundo. As duas flechas se encontraram ponta com ponta.
O que se conclui de tudo isto é que a nossa prática é o zazen. “Sentar por sentar”. Sem intenção, sem ganho. Não há nada a salvar, não há apegos, não há Caminho.
Mas para mim, fica bem claro que aqui, só a prática nos ajuda. As palavras não conseguem explicar o que quero dizer, não podem explicar o que sou. Por isto este texto (e qualquer outro) falha. Para ir além do saber e do não saber saímos do reino das palavras.
“O significado não pode estar nas palavras
Ele se adapta para aquele que procura...
Nem rejeitar nem apegar-se as palavras.
Ambos errados: como uma bola de fogo
Útil, mas perigosa.
Apenas expresso em linguagem elegante
O espelho ficará maculado”.
Samadi do Espelho precioso
Em gasshô
Dozen Muni sensei
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